Caso Clínico: Rabdomiólise

J.R.C., masculino, 31 anos, bombeiro, durante um resgate exaustivo que necessitou do uso de rapel, sentiu dores intensas nos membros inferiores. Ao final do resgate, já em solo, apresentou micção com urina escurecida, fraqueza acentuada com dificuldade de se manter em pé e mialgia nos membros inferiores.

Após quatro dias, como os sintomas não cessaram, procurou o Pronto Socorro com quadro de náuseas com salivação aumentada e vômitos, dores musculares intensas, taquicardia (126 bpm), rubor facial, febre (38,2o), diminuição do volume urinário e urina escura (marrom).

Os exames laboratoriais apontaram:

CPK = 5.312 U/L – indicativo de insuficiência renal

Creatinina = 13,6 mg/ dL

Uréia = 228 mg/dL

Potássio = 4,7 mEq/dL

LDH = 174 UI/L.

História

Nega quadro infeccioso e uso de estatinas e anti-inflamatórios não-esteróides. Sem relato de patologia renal pregressa ou familiar ou sorologia positiva para leptospirose.

Nega uso de drogas ilícitas.

O paciente foi internado e evoluiu com piora clínica e laboratorial, perfusão renal ineficaz, sendo indicada a terapia substitutiva renal por hemodiálise no 9º dia.

Hipótese diagnóstica

Rabdomiólise seguida de insuficiência renal aguda. 

Mas…. o que é a Rabdomiólise?

Definição

A Rabdomiólise é uma síndrome que ocorre pela degeneração de células musculares estriadas, com liberação de material tóxico intracelular, como mioglobina, eletrólitos (sódio, potássio, cálcio, fosfatos, uratos) e enzimas musculares, principalmente a creatinofosfoquinase (CPK), na corrente sanguínea.

Etiologia

  • Traumas musculares
  • Exercícios físicos exaustivos
  • Isquemia muscular
  • Distúrbios metabólicos
  • Distúrbios enzimáticos
  • Uso de drogas lícitas e ilícitas
  • Queimaduras extensas
  • Alterações repentinas de temperatura
  • Hipertermia maligna
  • Hipotireoidismo grave
  • Diabetes Mellitus descompensado
  • Síndrome compartimental aguda dos membros inferiores após fraturas
  • Infecções virais
  • Doenças autoimunes
  • Agressão por animais peçonhentos
  • Imobilizações prolongadas

As causas podem estar associadas a 3 categorias: (GOLDONI e MIDON, 2010)

  • Traumática ou por compressão muscular
  • Não traumática por esforço
  • Não traumática sem esforço

Em todas as situações ocorre isquemia muscular (reversível ou irreversível) com ou sem necrose que desencadeiam alterações na membrana celular e entrada de conteúdo celular na corrente sanguínea.

Neste caso, houve uma situação em que a demanda por energia nos músculos excedeu o suprimento energético disponível.

Fisiopatologia

Segundo R.R. Correa, Tenente Médico do Exército Brasileiro, a fisiopatologia consiste “na liberação de substâncias intracelulares após a ruptura da barreira constituída pela membrana celular. Dentre estas substâncias, pode-se citar certos eletrólitos e um pigmento presente no citoplasma de células musculares, a mioglobina, a qual terá papel primordial na gênese da principal complicação da rabdomiólise, a injúria renal aguda, através da agressão direta deste pigmento nos túbulos renais, levando a um quadro de necrose tubular aguda. Os principais eletrólitos liberados pelo processo de lise são o fosfato e o potássio; a elevação da concentração deste último pode levar a uma desestabilidade da membrana dos miócitos cardíacos, podendo levar a arritmias ventriculares fatais e consequente morte súbita”.

Diagnóstico

– História clínica, sinais e sintomas

– Exames laboratoriais como dosagem de potássio, fosfato e ácido úrico

– Níveis plasmáticos e urinários de creatinofosfoquinase (CPK) e de mioglobina

Manifestações clínicas

  • Urina de coloração escura (mioglobinúria)
  • Redução do débito urinário
  • Fadiga e fraqueza generalizada
  • Mialgias
  • Rigidez e/ou sensibilidade muscular
  • Dores articulares
  • Náuseas e vômitos
  • Febre
  • Sudorese
  • Taquicardia
  • Alteração do nível de consciência
  • Enzimas musculares elevadas
  • Desequilíbrio dos eletrólitos: potássio elevado (hipercalemia), fosfato elevado (hiperfosfatemia), cálcio baixo (hipocalcemia), ácido úrico elevado (hiperuricemia).

A apresentação clássica da rabdomiólise é constituída pela seguinte tríade:

Mialgina
Fraqueza muscular
Pigmentúria (urina acastanhada – mioglobulinúria)

Tratamento

O objetivo primário é a prevenção de fatores que potencializam a insuficiência renal aguda: depleção de volume, obstrução tubular, acidúria e liberação de radicais livres.

  • Hidratação vigorosa precoce – reposição volêmica
  • Diuréticos – Manitol
  • Correção de dos distúrbios eletrolíticos: hipercalemia, hipocalcemia, hiperuricemia, hiperfosfatemia
  • Alcalinização da urina – Bicarbonato de sódio – mantendo um pH urinário maior que 6 e menor que 7,45
  • Terapia substitutiva renal conforme evolução para lesão renal oligúrica

Algumas complicações

  • Hipovolemia – a depleção de volume é causada pelo sequestro de fluídos pelos tecidos musculares afetados (necróticos)
  • Síndrome compartimental – o acúmulo de fluído e a falência dos mecanismos de drenagem dos compartimentos musculares irão condicionar um aumento significativo das pressões intracompartimentais com lesão muscular adicional
  • Coagulação intravascular disseminada – por componentes liberados do tecido muscular necrótico, pela liberação de tromboplastina pelas fibras musculares lesadas, resultando em complicações hemorrágicas difusas
  • Insuficiência renal aguda – a mioglobina tem um efeito nefrotóxico direto e a vasoconstrição renal ativada devido à depleção do volume intravascular
  • Hipocalcemia – está associada ao acúmulo de cálcio pelos músculos necrosados
  • Hiperfosfatemia – decorre da liberação de fosfato pelo músculo e do seu acúmulo após o estabelecimento da insuficiência renal
  • Hipercalemia – decorre da liberação de potássio intracelular e do compromisso da excreção renal.
  • Arritmias – podem ocorrer devido aos distúrbios eletrolíticos, principalmente hipercalemia e hipocalcemia
  • Acidose metabólica – decorre da libertação pelas fibras musculares destruídas de ácidos orgânicos como o lactato e sulfato

Alguns diagnósticos de Enfermagem

  • Dor aguda (experiência sensorial e emocional desagradável que surge de lesão tecidual real ou potencial com duração de menos de seis meses) caracterizada por dores musculares relacionada à pressão nos tecidos musculoesqueléticos.
  • Náusea (fenômeno subjetivo de uma sensação desagradável na parte de trás da garganta e do estômago que pode ou não resultar em vômito) caracterizada pela salivação aumentada relacionada aos distúrbios eletrolíticos causados pela liberação dos componentes do tecido muscular na corrente sanguínea.
  • Risco de desequilíbrio eletrolítico (suscetibilidade a mudanças nos níveis de eletrólitos séricos que pode comprometer a saúde) relacionado à liberação de material tóxico intracelular pela degeneração de células musculares estriadas.
  • Volume de líquidos deficiente (diminuição do líquido intravascular, intersticial e/ou intracelular) caracterizado por taquicardia, fraqueza e diminuição do débito urinário relacionado à perda de líquido pelo dano muscular.
  • Mobilidade física prejudicada (limitação no movimento independente e voluntário do corpo ou de uma ou mais extremidades) caracterizada por fraqueza e dificuldade de se manter em pé relacionada à degeneração de células musculares e prejuízo musculoesquelético.
  • Hipertermia (temperatura corporal central acima dos parâmetros diurnos normais devido a falha na termorregulação) caracterizada por rubor facial e taquicardia relacionada ao processo inflamatório do músculo.
  • Risco de choque (suscetibilidade a fluxo sanguíneo inadequado para os tecidos do corpo, que pode levar a disfunção celular que ameaça a vida, que pode comprometer a saúde) relacionado à hipovolemia.
  • Risco de confusão aguda (suscetibilidade a distúrbios reversíveis de consciência, atenção, cognição e percepção que surgem em um período de tempo breve e que podem comprometer a saúde) relacionado à função metabólica prejudicada (níveis de ureia e creatinina)
  • Risco de quedas (suscetibilidade aumentada a quedas que pode causar dano físico e comprometer a saúde) relacionado à mobilidade prejudicada.
  • Risco de lesão por pressão (suscetibilidade a lesão localizada da pele e/ou tecido subjacente, normalmente sobre saliência óssea, em consequência de pressão, ou pressão combinada com forças de cisalhamento) relacionado à redução da mobilidade e forças de cisalhamento.

Algumas intervenções de enfermagem

  • Monitorar níveis de consciência e orientação temporal e espacial
  • Monitorar sinais vitais
  • Realizar controle rigoroso do balanço hídrico
  • Administrar fluídos, conforme prescrição
  • Realizar controle de diurese
  • Avaliar níveis plasmáticos de ureia e creatinina
  • Atentar para distúrbios eletrolíticos
  • Monitorar episódios de náuseas e vômitos
  • Realizar controle de temperatura
  • Administrar antitérmicos e realizar medidas não-farmacológicas (banho, compressas)
  • Monitorar sinais de choque (pressão arterial, frequência cardíaca e perfusão periférica)
  • Manipular o paciente de maneira cautelosa
  • Avaliar características, intensidade e local da dor
  • Aplicar escala de dor
  • Administrar medicamentos analgésicos, conforme prescrição
  • Observar integridade cutânea
  • Hidratar a pele e realizar massagem de conforto
  • Colocar colchão piramidal
  • Proteger as proeminências ósseas
  • Fazer inspeção diária da pele e avaliação de acordo com a escala de Braden
  • Auxiliar o paciente na movimentação corporal
  • Orientar o paciente sobre o risco de queda
  • Colocar pulseira de identificação de risco de queda
  • Manter grades no leito

Referências

  • Alves, E; Martins, B; Ruivo, R; Ruivo J. Return to Play após Rabdomiólise Induzida pelo Exercício. Rev. Medicina Desportiva informa, 2019; 10(2).
  • Brasil. Ministério da Defesa – Exército Brasileiro. Normas para Procedimento Assistencial em Rabdomiólise no Âmbito do Exército. Separata ao Boletim do Exército nº 1, de 3 de janeiro de 2020.
  • Correa, RR. Rabdomiólise em atividades militares. Academia médica. Disponível em: https://academiamedica.com.br/blog/rabdomiolise-em-atividades-militares
  • Galvão, J; Gusmão, L; Possante, M. Insuficiência renal e rabdomiólise induzidas por exercício físico. Rev Port Nefrol Hipert 2003; 17 (4): 189-197
  • Goldoni, F; Midon, ME. Rotinas Clínicas em Urgências e Emergências no HRMS. Campo Grande: Editora UFMS, 2010.
  • Magalhães, SC; Lima, LCR; Brito, LC; Assumpção, CO. Rabdomiólise induzida pelo exercício de força: revisão e análise dos principais relatos dos últimos 25 anos. R. bras. Ci. e Mov 2018;26(1):189-199.
  • Pedreira, L; Mergulhão, B. Cuidados Críticos em Enfermagem. 1a. ed. RJ. Guanabara Koogan, 2016.
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