Toda vez que se fala nos riscos decorrentes de um procedimento cirúrgico com anestesia geral, a maioria dos profissionais não se lembra da Hipertermia Maligna (HM) porque é um distúrbio farmacogenético, raro.
As razões que aumentam o risco da Hipertermia Maligna são: a raridade de ocorrência da crise e o despreparo para o atendimento de uma emergência desse porte.
Os resultados de uma pesquisa feita no centro cirúrgico de um hospital da cidade de São Paulo demonstraram o conhecimento insuficiente de profissionais sobre o assunto e a pouca assertividade sobre as manifestações clinicas. (Sousa e Cunha)
É importante ressaltar que a Hipertermia Maligna é potencialmente fatal.
Definição
A Hipertermia Maligna é uma doença farmacogenética, desencadeada por fármacos utilizados em anestesia geral, e também, por atividade física extrema em ambientes quentes.
Genética
É heterogênea, ou seja, oriunda de defeito em mais de um gene. Várias mutações do gene RyR1 foram identificadas, no entanto outros genes podem estar envolvidos. É herdada de forma autossômica com penetrância variável do traço herdado. (Chestnut et al)
A penetrância incompleta indica que o indivíduo tem a mutação genética para a susceptibilidade à HM, embora não significa que apresentará essa disfunção no primeiro ou até no segundo momento após a exposição a um agente desencadeador.
Agentes desencadeadores
Todos os agentes halogenados voláteis (halotano, enflurano, isoflurano, sevoflurano e desflurano) são desencadeadores da crise de Hipertermia Maligna.
Dentre os bloqueadores neuromusculares, os despolarizantes (succinilcolina) são responsáveis em acelerar a crise.
Epidemiologia – (Correia et al)
A susceptibilidade ocorre igualmente em ambos os sexos, ainda que as crises sejam mais comuns em pessoas do sexo masculino. A incidência é de 1/15.000 pacientes infantis e 1/50.000 pacientes adultos. Também foram registrados caso em idades extremas.
Fisiopatologia (Batti)
A HM é o resultado de uma alteração na regulação intracelular de cálcio na musculatura esquelética. Os agentes desencadeantes levam a um aumento da concentração livre de cálcio mioplasmático, o que induz à contratura muscular, ativando a glicogenólise e o metabolismo celular, resultando em calor (intensa elevação da temperatura), excesso de ácido láctico e rabdomiólise (lise do tecido muscular esquelético de natureza aguda, com consequente liberação dos componentes celulares como mioglobina, creatinoquinase, potássio e mediadores inflamatórios para o plasma).
Sinais clínicos
O hipermetabolismo é evidenciado por:
- Hiperatividade do sistema nervoso simpático – taquicardia, hipertensão, arritmias
- Rigidez muscular (generalizada e/ou do masseter – músculo de elevação da mandíbula)
- Acidose metabólica e respiratória
- Hipercapnia
- Hipoxemia
- Hipertermia – elevação da temperatura corporal – pode ocorrer no início, mas em geral, é um sinal tardio
- Rabdomiólise – pela elevação de CPK e potássio
- Arritmias cardíacas
- Cianose
- Sudorese
- Concentração elevada de CO2 ao final da expiração
- Mioglobinúria
As crises fulminantes são potencialmente fatais e incluem múltiplas manifestações metabólicas e musculares
As crises moderadas incluem discretas alterações metabólicas e musculares com menos gravidade que a forma fulminante
As crises leves somente apresentam discretas alterações metabólicas, sem manifestações musculares.
As complicações adicionais e potencialmente fatais são:
- Coagulação intravascular disseminada
- Insuficiência cardíaca congestiva
- Isquemia intestinal
- Síndrome compartimental dos membros – associada a um edema muscular profundo
A Hipertermia Maligna pode se manifestar imediatamente após a exposição ao agente ou algumas horas após a sua interrupção. O diagnóstico se torna difícil pela impossibilidade de identificar o paciente susceptível sem ter a exposição prévia. O diagnóstico é baseado nas manifestações clínicas e nos resultados laboratoriais.
Na fase inicial (Amaral et al):
Sinais clínicos |
Resultados laboratoriais |
• Taquicardia
• Taquipnéia • Elevação progressiva de CO2 expirado • Rigidez muscular localizada • Cianose • Sudorese • Arritmias • Hipertermia |
• Hipercapnia (acidose respiratória)
• Acidose metabólica • Hipercalemia • Hiperlacticidemia • Dessaturação venosa central |
Na fase tardia (Amaral et al):
Sinais clínicos | Resultados laboratoriais |
• Febre acima de 40ºC
• Má perfusão cutânea • Cianose • Instabilidade da pressão arterial • Rigidez muscular generalizada |
• Elevação da creatinoquinase plasmática
• Mioglobinemia • Elevação da creatinina plasmática • Coagulação intravascular disseminada |
Tratamento
O Dantrolene sódico intravenoso (derivado hidantoínico, altamente lipossolúvel e pouco hidrossolúvel) é o único agente disponível para o tratamento específico da Hipertermia Maligna.
É um relaxante muscular que diminui a quantidade de cálcio liberada pelo retículo sarcoplasmático (retículo endoplasmático das células musculares). Bloqueia a contração muscular em 75%, porém, a despeito da dose, a paralisia total não pode ser obtida.
A concentração plasmática terapêutica permanece estável por aproximadamente 5 horas após a administração. A meia vida de eliminação estimada é de 12 horas e, para crianças, de 10 horas.
O Dantrolene deve ser diluído em água estéril.
O risco da administração de Dantrolene é mínimo, se comparado ao desenvolvimento da Hipertermia Maligna. Portanto, o início do tratamento apenas frente aos sinais clínicos, é justificado.
Por ser o principal antídoto para a HM, a existência desse fármaco tornou-se obrigatória tanto em hospitais públicos, quanto em privados, por meio da lei no. 10.781, regulamentada pelo Governo do Estado de São Paulo, em março de 2001.
O que fazer na hipótese de Hipertermia Maligna
Uma vez estabelecida a hipótese diagnóstica de Hipertermia Maligna, a equipe deve:
- Suspender os agentes desencadeadores imediatamente
- Hiperventilar o paciente, com alto fluxo de oxigênio (100%)– para atender a demanda metabólica
- Retirar os vaporizadores do circuito do equipamento de anestesia – Não é necessário trocar o equipamento de anestesia, pois isso acarretaria perda de tempo valioso para realizar outras medidas
- Administrar o Dantrolene – o prognóstico é influenciado significativamente pelo tempo entre o início dos sintomas e a administração do fármaco
- A anestesia será mantida com hipnóticos, opióides e bloqueadores neuromusculares adespolarizantes, conforme a necessidade do paciente
- Resfriar o paciente. Utilizar resfriamento externo (aplicação de bolsas de gelo, colchão térmico) e interno (infusão de soluções geladas intravenosas, retais, vesicais– resfriamento ativo), se necessário, até atingir 38ºC – para evitar hipotermia
- Monitorar a temperatura corporal
- Corrigir a acidose metabólica e reduzir a hipercalemia
- Tratar as arritmias cardíacas – geralmente são controladas com a correção da acidose de da hipercalemia
- Manter diurese acima de 2ml/kg/h – com hidratação ou diuréticos
- Concluir a cirurgia o mais rápido possível
Efeitos colaterais da aplicação do Dantrolene
- Fraqueza muscular
- Sonolência
- Tonturas
- Confusão mental
- Flebite
- Insuficiência respiratória
- Desconforto gastrointestinal
- Diarreia
- Vômito
- Convulsão – menos comum
- Insuficiência hepática
Para uma assistência com qualidade é fundamental que cada profissional envolvido no processo anestésico-cirúrgico reúna as ações necessárias para identificar susceptibilidade à HM e intervir rapidamente na sua ocorrência.
Doutora em Ciências (EEUSP), pós-graduada em Administração Hospitalar (UNAERP) e Saúde do Adulto Institucionalizado (EEUSP), especialista em Terapia Intensiva (SOBETI) e em Gerenciamento em Enfermagem (SOBRAGEN). É professora titular da Universidade Paulista no Curso de Enfermagem, e professora do Programa de Especialização Lato-sensu em Enfermagem em Terapia Intensiva e Enfermagem do Trabalho na Universidade Paulista.